quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

O real e o ficcional em "Jogo de cena" de Eduardo Coutinho

Uma das formas mais atuais e mais importantes de se refletir sobre a literatura e as artes é considerar a complexa relação entre os dados reais que alicerçam toda atividade artística e a sua característica essencialmente ficcional. A dicotomia realidade/ficção promove discussões no mundo da crítica literária desde sempre, e anda encontrando largo espaço nos estudo sobre cinema. O sucesso do 1º volume de “As aventuras do engenhoso fidalgo Dom Quixote de La Mancha” em sua época foi tanto que outro escritor além de Cervantes, um tal Alonso Fernandez de Avellaneda, apropriou-se do personagem para criar outras aventuras para o amigo de Sancho Pança. Sabendo disso, no 2º volume de seu livro, Cervantes provocou o encontro de Dom Quixote com o livro apócrifo de Avellaneda numa feira. Surpreso de se encontrar escrito personagem de um livro que não o de Cervantes, Quixote alerta os leitores para o fato de que o livro de Avellaneda era falso, só o de Cervantes contava sua verdadeira história. Este fato literário é um dos mais emblemáticos exemplos de como a ficção pode envolver-se com a realidade de forma a não mais se estabelecerem fronteiras entre uma e outra. No instante em que Quixote encontra-se consigo mesmo em forma literária, perdemos os referenciais (a princípio tão bem determinados) que definem os limites entre o dentro e o fora do livro. Quixote sai de sua condição de personagem preso às dimensões do papel e enxerga-se para além do texto de Cervantes, mesmo que paradoxalmente, ele ainda esteja dentro do mesmo. Esse exemplo e outros tantos que poderiam ser lembrados aqui reforçam a idéia de que as relações entre verdade e ficção são bem mais imbricadas do que poderiam parecer à primeira vista. E é partindo desta reflexão que vamos falar de Jogo de Cena de Eduardo Coutinho, filme de 2006, recém-lançado em dvd. O filme de Coutinho traz à tona a discussão sobre como se realiza a ficção e como a realidade é também uma construção feita de várias representações. Jogo de cena é um documentário que leva a noção de representação às últimas conseqüências. Nele, o diretor Eduardo Coutinho conversa com diversas mulheres que contam suas histórias de vida. Em alguns momentos, porém, percebemos que estes relatos estão sendo interpretados por outras pessoas que estão atuando e fazendo daquele relato, antes “real”, uma representação cênica. Uma das primeiras entrevistas é a de Gisele Alves Moura, que conta uma história sobre a difícil gravidez pela qual passou. Entretanto, a montagem alterna a fala de Gisele com a fala da atriz Andréa Beltrão, representando a mesma cena, a mesma entrevista. Percebemos então, as diferenças e as semelhanças entre um relato e outro, mas isso não é o importante: o mais incrível é perceber as emoções e as dificuldades que o texto de uma pessoa real podem gerar num ator profissional, acostumado a dar vida a personagens de livros, peças de teatro, roteiros de cinema. Fernanda Torres, uma das atrizes convidadas por Coutinho, declara essa dificuldade e corajosamente se expõe em toda sua vulnerabilidade diante do texto (real) de Aleta Gomes Vieira. O texto de Wolfgang Iser intitulado Os atos de fingir ou o que é fictício no texto ficcional aborda questões caras a essa discussão quando afirma que toda obra de arte se expõe como ficção, e que de alguma forma ela produz chaves estéticas ou conceituais que afirmam esse caráter de ficção, mesmo quando ele não é perceptível a priori. Iser chama isso de “desnudamento ficcional”, ou seja, a obra de arte se despe de sua condição de representação de uma verdade e passa a dar “dicas” de que é um fingimento, uma ficção. O problema é que em toda ficção existe uma verdade em construção e é aí que as coisas se misturam e se entrelaçam. Mario Vargas Llosa tem um livro com título bastante elucidativo que trata justamente deste conflito: A verdade das mentiras. Nele, o peruano fala sobre as várias verdades dos textos ficcionais e de como a arte pode construir realidades através das belas mentiras da ficção. (“Mentiras sinceras me interessam” – Cazuza). É claro que essas coisas levam ao poema de Fernando Pessoa que já é quase um chavão: O poeta é um fingidor/ Finge tão completamente/ que chega a fingir que é dor / a dor que deveras sente. O filme de Coutinho é isso: não importa se é fingimento ou não, o que importa é que dói! Os nomes dados para isso – documentário, ficção, encenação, verdade, representação – acabam se tornando ineficientes e prescindíveis: o efeito, a beleza e a subjetividade prevalecem e fazem a experiência estética valer a pena.

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