terça-feira, 2 de março de 2010

De anseios e coragens

Eu tinha muita vontade de ser livre como os mendigos das ruas das grandes cidades, seres das superfícies de concreto, da cachaça barata e da solidão, tão distantes das necessidades mais prementes de todos nós, seres humanos do século XXI e suas máquinas de fazer café, fazer dinheiro, fazer pão, fazer menino, fazer tijolo, fazer papel, fazer, fazer, fazer. Um mundo inteirinho de programações, debates, reflexões, convites, reuniões, negócios e bons-dias aos senhores diretores, advogados, administradores, empresários, empreiteiros, professores, celebridades, ufa! Se eu fosse o senhor barbudo e maltrapilho que pede moedas em seu chapéu roto e empoeirado certamente que o mundo seria outro e eu não teria a mais vaga notícia dos terremotos, das campanhas políticas, dos desastres de avião, das musas de carnaval que se despem nas revistas masculinas, dos cartões postais que desenham a Torre Eiffel, dos amores contrariados das novelas globais, dos suicídios dos romancistas russos, dos, das, de. Não falo aqui de materialidades, do conforto do meu travesseiro que me consola toda tarde quando eu leio meus romances de 400 páginas comprados pela internet num site bacana cuja entrega é realizada por um sistema de correios muito eficiente, embora obsoleto para as cartas de amor – que ninguém mais escreve, porque somos todos ridículos – e do abajur vermelho que me foi presenteado por um grande amigo que nunca andou pelas ruas com um casaco de general nem tocou flautas peruanas no metrô para ganhar uns trocados. Não, eu não falo do que tenho. Eu falo do que sei, do que preciso saber, do que nunca vou saber mas deveria, daquilo que em breve saberei, daquilo que enche e preenche uma massa cinzenta que certa vez peguei com minhas próprias mãos amedrontadas numa aula de anatomia encefálica que um colega da universidade me fez assistir. Pra quê tanta perna, meu deus? Por que eu não posso simplesmente ir viver no vento, mesmo que seja no bafo quente dos motores dos ônibus que jogam no ar a fumaça preta de óleo diesel e passam incólumes e violentos pelo viaduto em que aquele mendigo dorme sem travesseiro, sem abajur e sem máquinas de café?
Émile Andrade (uma madrugada de março de 2010)

3 comentários:

Emília disse...

Excelente!
É mais ou menos isso q me pergunto de vez em quando...

Otávio Lago disse...

Perfeito!

Rafael disse...

Muito lindo! =]